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Histórico “Rego do Boi”, em Resende, evidencia crise da água

Aqueduto, na serra de Montemuro, está ligado à história de Portugal e dos Resendes

O “Rego do Boi”, no município de Resende, norte de Portugal, está seco em pleno mês de outubro, apesar de já ter começado o novo ano hidrológico. Este aqueduto ou “levada” (corrente de água desviada de um rio para as regas ou abastecimento) de aproximadamente 20 km de extensão, que pode ser mais antigo do que Portugal, nasce na Lagoa D. João, na serra de Montemuro, e termina no Mosteiro de Santa Maria de Cárquere. “Nós sempre tivemos muita água em Resende, mas a situação mudou nos últimos anos e mesmo décadas”, alerta Tiago Colaço, 33 anos, presidente da Associação de Valorização e Desenvolvimento do Vale do Cabrum, também conhecida por Bolota. 

Água, ou a falta dela, é o tema escolhido para esta “viagem” ao Vale do Cabrum, que este repórter empreendeu, no feriado nacional de 5 de outubro, guiado por Tiago. O percurso começou na cumieira da serra, que marca a entrada do Vale do Cabrum, a cerca de 880 metros de altitude. Esta cumieira divide as bacias hidrográficas da ribeira do Corvo (que nasce na Freguesia de Felgueiras e desagua no rio Douro) e do rio Bestança (ambos com origem no ponto mais alto da serra de Montemuro, a 1381 metros de altitude, e término no Porto Antigo do Douro) e do rio Balsemão (nasce na serra de Montemuro e desagua no Douro, já no município de Lamego).

A escolha do Rego do Boi para esta reportagem é carregada de simbolismo. D. João de Castro, que viveu no século XVI, era senhor destas terras de Resende, como representante do rei; daí o nome dado à lagoa onde começa o rego. D. João, que foi vice-rei da Índia, era antepassado de Emília de Castro, filha de D. Antônio Benedito Castro, 4º Conde de Resende, e esposa do escritor Eça de Queirós. Já o Mosteiro de Cárquere, onde termina o rego, está ligado à origem da nacionalidade portuguesa e da família Resende. 

Rego e lendas 

Duas lendas estão relacionadas com o surgimento do Rego do Boi. Uma delas refere-se aos agradecimentos do primeiro rei D. Afonso Henriques aos habitantes pela sua cura milagrosa. O rei perguntou o que desejam e os locais responderam: água para as regas e os moinhos. Então, o rei mandou abrir o referido rego, do alto da serra até Cárquere. A outra lenda atribui aos mouros a abertura da referida levada em apenas uma noite, após o que comeram um boi assado. “Durante a construção, uma velha ter-se-á atravessado no referido rego, reclamando água para os cereais, nos dois meses em que o cereal está para nascer” (Resende Terras de Montemuro – da Lagoa ao Rio*). 

Na medida em que subimos a serra, foi possível avistar, para além da bela paisagem onde ao fundo passa o rio Cabrum, as povoações ou pequenos aglomerados humanos, que estão praticamente desabitados e em risco de desaparecer, como Granja, Vila Pouca, Panchorrinha e Vale de Papas (classificado como “Aldeia de Portugal”). Na vegetação meio esverdeada, ainda é forte a presença do carvalho-negral e do carvalho-alvarinho, suplementados por castanheiros e amieiros. O carvalho é conhecido na serra como “marinheiro” porque, segundo a tradição oral, há muitos séculos os carvalhos foram cortados para a construção de barcos. 

Tiago chamou a atenção para os sinais evidentes de desertificação, que são intensificados por incêndios florestais. Por isso, defendeu que sejam adotados planos de reflorestação, constituídos de ações concretas de sensibilização, coleta de sementes, sementeira e plantação propriamente dita. Mas, “para isso, é necessário um passo básico que é o cadastro único do território, que em breve poderá ser resolvido com o BUPI, que o cadastro digital das propriedades”.

E assim chegamos ao topo da serra, uma espécie de “muro” que cria uma barreira às nuvens que vem do mar, segundo explicou Tiago. Assim, de um lado, a vegetação decorrente do clima oceânico é abundante e úmida; de outro, a vegetação é mais seca. 

Na povoação de Talhada, não muito distante da capela de São Cristóvão, na Freguesia de Felgueiras, encontramos o ribeiro Taquinho, um pequeno curso d´água que desagua no rio Cabrum. O local onde paramos destaca-se pela presença abundante de moinhos desativados, onde a força motriz já permitiu em décadas passados a produção de farinha. O ribeiro Taquinho, que está com pouca água, nasce pouco abaixo das torres eólicas; a alguns metros da sua nascente há um dique que, em situação normal, recolhe as águas e as encaminha para o Rego do Boi.

Lagoa seca 

A grande surpresa daquela manhã foi encontrar completamente seca a bacia da Lagoa D. João, de cerca de 2 quilômetros de diâmetro, localizada numa “depressão geológica” (espécie de brejo) à altura de cerca de 1200 metros na serra de Montemuro, na divisa entre Resende, Castro Daire e Cinfães.

No percurso, verificamos que o acesso à lagoa se encontrava fechado por ser uma propriedade particular; então preferimos continuar no caminho público de onde verificamos algo que Tiago nunca havia visto nesta época: estava seca a parte mais baixa da lagoa onde deveria ter água. “A lagoa é uma cabeceira d´água que durante o inverno fica quase na totalidade inundada. Foram a qualidade e a abundância que fizeram com que fosse o local escolhido para a captação de água de abastecimento de Cárquere.” 

Esta lagoa tem particularidades que a torna importante no cenário nacional, explica Tiago. É a única de altitude que não está sob proteção de um parque natural, como são os casos da serra da Estrela e do Parque Natural de Montesinhos (ao norte, próximo à divisa da Espanha). Além disso, essa bacia pantanosa é abundante em trufas (flor azul que é uma espécie específica de grandes altitudes com água. É também ambiente da espécie carnívora “orvalhinha”, que existe apenas em três locais – os outros dois são o Gerês e o Montesinho. 

É por isso que Tiago não se fartou de referir que esse território é uma paisagem a proteger, sugerindo mesmo que merece ser classificada como “Paisagem Protegida” (interação harmoniosa do ser humano e da natureza que evidencie grande valor estético, ecológico ou cultural).

Sobre a Bolota 

A Associação de Valorização e Desenvolvimento do Vale do Cabrum, a Bolota, busca promover a ligação entre populações, ambiente e patrimônio, com vistas ao desenvolvimento do Vale do Cabrum. A bacia hidrográfica deste rio localiza-se nos municípios de Resende e Cinfães, com cerca de 80% da área inserida na Rede Natura 2000 da Serra de Montemuro. 

A Bolota iniciou suas atividades em novembro de 2017, com um projeto de florestação do Vale do Cabrum, onde foram semeadas mais de 7000 sementes, entre as quais a bolota que foi adotada como símbolo da associação. Mas a Bolota já organizou caminhadas, ações de limpeza, de florestação e de sensibilização, além de fazer parte de iniciativas conjuntas com instituições públicas. Para os próximos anos, pretende executar realizar iniciativas, como caminhadas, sementeiras e eventos que gerem receitas a reverter ao projeto de florestação. 

*Correia, Alexandre Lourenço. Finerge, 2009, Município de Resende.

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